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TAL PAI, TAIS FILHOS

Noite chuvosa em São Paulo, quase meia-noite. Após trabalhar até mais tarde, consigo chegar a tempo no ponto do meu ônibus para pegar a minha condução. É assim mesmo, a gente tem a mania de posse e acredita que o veículo é só nosso. Parque Dom Pedro, poucas pessoas na fila à espera, eu e mais cinco passageiros para ser mais preciso, além da tripulação composta pelo motorista e pelo cobrador.
Um a um os passageiros entram e procuram o seu lugar. Como de costume me acomodo num assento no final do corredor, pois o local permite uma visão panorâmica e ampla de todo o ambiente, onde consigo distrair-me observando os movimentos, tornando o trajeto menos modorrento.
À minha esquerda um casal de jovens ensaia uns amassos. Ao lado do cobrador um senhor trajando uma capa preta e com a cabeça coberta pela touca, tão logo se senta pende a cabeça para o lado da janela e inicia um cochilo. Mais à frente, em assentos separados, um homem de idade média está compenetrado na leitura do jornal enquanto que na poltrona à sua esquerda uma jovem senhora fala ao celular.
Tem início a viagem com as janelas embaçadas e a água riscando o lado externo do vidro tornando o ambiente opaco. Lá fora a chuva incessante, dentro ouvia-se o ronco do motor, o vaivém do limpador dos pára-brisas e um quase murmúrio da senhora ao telefone. Tudo indicava ser um retorno comum, comum como todos os retornos para casa.
Logo na primeira parada na Avenida do Estado sobe um rapaz alto encapuzado, vestindo casaco preto, passa pela catraca e ajeita-se à minha direita.  No ponto seguinte entra uma pessoa com a mesma fisionomia do que entrara antes, fica em pé ao lado do motorista. Penso: que baita semelhança – poderia ser só impressão, pois a iluminação não era nada favorável. Observo que o sujeito se aproxima ainda mais do motorista e lhe diz algo. De repente, em uma manobra súbita o veículo entra em uma rua deserta nas imediações da Rua Nazaré e continua em sua marcha.
O senhor que aparentara um tranquilo cochilo levanta-se e com a arma apontada para o cobrador pede para ninguém se mexer. Quase que ao mesmo tempo o rapaz ao meu lado repete o mesmo gesto e, com o revólver em punho, exige as carteiras, os celulares, as alianças, as correntes e demais objetos, jogando a coleta para dentro da mochila.
Tudo passa com tanta velocidade que mal dá tempo de alguém reagir, na verdade ninguém esboçara reação alguma diante de gesto tão surpreendente. Qualquer atitude naquela situação seria suicídio.
Ato consumado, o indivíduo lá na frente solicita ao motorista que pare e que abra as portas. Ele desce ligeiro, enquanto que o que estava ao meu lado faz o mesmo, sem antes recomendar ao senhor que rendia o cobrador:
– Pai, não dá mole não, pai. Pinote, pinote que o maninho já vai longe.
Samuel De Leonardo (Tute) é publicitário. Atuou em diversas agências de Publicidade de São Paulo. Publicou os livros: “Hacasos” em 2016 e “Versos & Prosas” em 2022. Tem alguns de seus textos inseridos nos sites Recanto das Letras, Casa dos Poetas e das Poesias, e textos radiofonizados na voz do âncora Milton Jung, no programete Conte a sua história de São Paulo da Rádio CBN SP. samuel.leo@hotmail.com.br e Facebook@samueldeleonardo.

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