Ele estava tão sozinho que sequer a sua sombra o acompanhava. Entrou no recinto sem ser notado.
Não era a primeira vez que adentrava aquele ambiente, embora não fosse com frequência, nos últimos anos estivera ali dezenas de vezes. Sempre só, entrava sério, cabisbaixo, bem sóbrio. Só, também saía, alegre, animado, bem etilizado.
O estabelecimento era acanhado, um botequim digno das melhores crônicas policiais. Iluminação precária, a decoração era bem antiga. Local exótico e bizarro, seres esquisitos, gente estranha, porém simples. Entre àquelas pessoas, algumas sozinhas, pequenos grupos e alguns casais. Um imóvel deteriorado pela ação do tempo. Se, um automóvel fosse, seria as carcaças de um Chevrolet ou um Ford 45.
No piso de cerâmica avermelhada era visível uma crosta de cera, como também era possível tropeçar nos orifícios onde num momento da história houvera peças ali fixadas. No teto, que evidenciava que um dia fora branco, dois ventiladores veteranos honravam suas funções, mesmo gemendo e com a respiração ofegante, sopravam uma brisa na tentativa de arejar o ambiente.
Um longo balcão de mármore todo desgastado e com manchas aparentes, ocupava quase toda a área de um canto do salão, sobre o qual recipientes de vidro em formatos de potes expunham os mais variados petiscos, como ovos coloridos, sardinhas enroladinhas no palito, salsichas no vinagre, moelas de galinha, cebola curtida, tremoço e uma enorme bandeja de alumínio abarrotada de suculentos torresmos e de linguiça Cabo de Reio.
Atrás do balcão uma senhora com as bochechas rosadas e com lenço estampado na cabeça lavava distraidamente as louças na pia, sem se preocupar em fechar a torneira, num desperdício de água sem tamanho, enquanto um homem ao seu lado, usando um boné preto, com longas barbas e bigodes brancos, trajando um jaleco encardido, atendia freneticamente os pedidos do único garçom da casa. Ao fundo uma imensa prateleira de madeira escura acomodava dezenas de garrafas com destilados das mais variadas espécies.
Algumas mesas cobertas com toalhas na cor vermelha desbotada distribuídas com cadeiras de madeira que, a cada movimento do freguês ao sentar-se, rangiam melancolicamente, ocupavam a outra área do estabelecimento. Bem mais ao fundo, podia-se ouvir duas caixas acústicas roucas desafiando ouvidos e dilacerando os corações das pobres almas ali presentes, de tanta sofrência impregnando toda a atmosfera daquele lugar, mesclados com as onomatopeias, os zum-zuns, os hahahahas, os kkkkkks, os rsrsrs e os cof cofs dos frequentadores ali presentes.
O homem solitário acomodou-se numa mesinha lá no fundo, aquela bem ao lado da entrada onde uma placa timidamente iluminada de luz de néon indicava “WC”, seguida por três setas, “Ele”, “Ela” e “Ou”.
O garçom, um sujeito ajustado perfeitamente em seu manequim (quase um metro e meio de altura, oitenta e tantos quilos, desprovido de cabelos), pouco alto, fofinho e completamente calvo, era mais que o moço que servia o salão, era a perfeita referência: “o pequeno grande homem”, um gigante esbanjando simpatia.
O solitário homem faz um gesto levantando uma das mãos na tentativa de ser notado pelo profissional que atendia todas as mesas, sempre com um pano de prato jogado por sobre um dos ombros, examina o cardápio de cima abaixo, de baixo acima e, ao mesmo tempo, o atendente passa o pano na tentativa de limpar a mesa.
Enquanto a referência anota o pedido e segue para o balcão, o solitário dirige-se ao mictório. Em pé, diante do vaso não pode deixar de ler as frases grafadas na parede à sua frente: “O futuro do mundo está em suas mãos”; “Ele não é tão grandão pra você mijar no chão”; “Ah que saudade da Amélia”; “Não confunda incontinência urinária com continência ordinária” e se distrai com cada uma das filosóficas menções até ser interrompido por um cliente afoito que na pressa de fazer o xixi se molha todo. Ele se afasta do desastrado e tenta lavar as mãos, em vão, não cai uma gota d’água da torneira. Volta para a sua mesa e encontra o seu pedido pronto para saborear. Rapidamente devora tudo e seca o copo.
O simpático pouco alto, fofinho e completamente calvo, com cara de quem não entendera bulhufas, anota o pedido e segue para o balcão.
O movimento do bar é intenso, o pequeno grande homem transpira como gente grande, mesmo. Muitos pedidos e rodadas depois, o homem solitário pede a conta. O patrão, já alto, e bota alto nisso, finge conferir a conta. O solitário homem, antes de se levantar, mete a mão no bolso da calça, tira uma nota de dinheiro da carteira e a enfia no bolso do jaleco do garçom. Com certa dificuldade, dirige-se ao caixa em zigue-zague, driblando as mesas.
No caixa, alguns displays com carteiras de cigarros, balas e, curiosamente, sachês de um conhecido antiácido, além daquele mesmo senhor de barbas brancas. Ainda, avisos inusitados fixados na testeira da cabine, verdadeiros clássicos da filosofia popular, como: “Fiado só amanhã”; “Na hora de vender fiado o freguês fica contente. Na hora de pagar ele fica valente”; “Se bebes para esquecer, pague antes de beber”; “Nós e o banco fizemos um acordo. Não trocamos cheques e eles não vendem cachaças.” entre outras pérolas.
Na saída, como das vezes anteriores, o homem solitário sente uma grande satisfação e uma leveza n’alma difícil de explicar ao olhar para a fachada do estabelecimento, cujo luminoso estampava em letras garrafais piscantes: “BARGANHA — VOCÊ ENTRA DERROTADO, SAÍ VITORIOSO”
Contato: samuel.leo@hotmail.com.br e Facebook@samueldeleonardo.
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