Nesses quase dezessete meses de pandemia e degradação dos valores humanitários, fomos e estamos sendo obrigados a conviver, diariamente, com inúmeras mortes, divisão da sociedade, ações equivocadas e omissões criminosas do Estado. A crise humanitária se arrasta e, por isso, podemos comparar a forma de gestão da pandemia no Brasil com a necropolítica.
Segundo o filósofo, cientista político e historiador camaronês Achille Mbemb, a necropolítica pode ser definida como o uso do poder político e social por parte do Estado, de forma a determinar, por meio de ações ou omissões quem pode permanecer vivo e quem deve morrer, sendo caracterizado com a política da morte, ou da promoção da morte em benefício de outros grupos ditos “mais relevantes ou superiores” na visão do Estado (MBEMBE,2018).
A necropolítica é frequentemente relacionada ao biopoder ou biopolítica, conceitos criados pelo filósofo Michel Foucault, em sua obra “Em defesa da sociedade” para referir-se ao uso do poder social e político para controlar e disciplinar a vida das pessoas, decidindo a forma de como quem deve viver ou morrer (FOUCAULT,2000).
Acompanhamos o show de horror que ocorreu nos hospitais de Manaus! Milhares de vidas perdidas pelo descaso do poder público federal, pela demora na atuação daqueles que tinham o dever de agir, pela falta de profissionais capacitados, pela ausência de leitos e respiradores, pela falta de oxigênio, pela falta de acesso às mínimas condições de sobrevivência; todos os responsáveis, sejam gestores, administradores, eleitos, escolhidos ou indicados não poderiam fazer da vida humana uma roleta russa de escolhas. Você pode viver! Agora, você vai morrer!
Se for verdade e, tudo que temos visto indica ser, a estratégia do governo federal sempre foi a da imunidade de rebanho ou imunidade coletiva, não priorizando o investimento em vacinas. Assim, vemos que a COVID-19 teve este governo como seu maior aliado, agravado também pelas guerras políticas com governadores e prefeitos.
Como frisado, trata-se de uma política da promoção da morte, mas não de qualquer morte, pois o corpo “matável” é aquele que está e será colocado em risco a todo instante, escolhido em razão da classe social, da condição econômico-financeira, da etnia, do desamparo do poder público, dentre outras, oportunidade em que o Estado utiliza seu poder para criar zonas de morte em razão da “inferioridade” de tal grupo.
A necropolítica também nos ajuda a entender porque determinadas pessoas são mais vulneráveis ao COVID-19, pois as principais medidas de combate à disseminação do vírus são a vacinação, o distanciamento social e a higienização das mãos. Todavia, sem o investimento em vacinas, os grupos que não têm acesso a saneamento básico e que não dispõem de um auxilio emergencial que possa amparar a hipossuficiência financeira acabam sendo os mais vulneráveis e os mais atingidos.
A omissão do governo em controlar a pandemia é uma clara ação baseada na necropolítica, pois sem acreditar na vacinação da população, o objetivo era garantir a tal imunidade de rebanho, ou seja, deixar a população inteira ser infectada para uma porcentagem considerável adquirir anticorpos, visando obstar a circulação do vírus.
Ocorre que tal “escolha” ou “opção” só fez surgir novas variantes do vírus, causando milhares de mortes em flagrante política irresponsável de combate à pandemia. Vimos um ministério da saúde como um trem desgovernado, com três ministros substituídos e sem autonomia na execução de seus trabalhos, desconsiderando a importância da ciência e o respeito à vida.
Ora, o papel do Estado é garantir o bem de todos, conforme prevê a Constituição da República. Logo, não podem existir escolhas pelo poder público de quem viverá ou morrerá. Tal prática vai na contramão do Estado Democrático de Direito.
Todos sabem que o acesso à saúde é direito de todos e dever do Estado, ainda mais nesse momento de pandemia. O número de mortes só não é maior, graças ao SUS que garante aos brasileiros uma saúde, mesmo com tantos desvios de dinheiro público e problemas estruturais já conhecidos por todos nós.
Não cabe ao Estado decidir quem vai viver ou morrer, pois sua função precípua é garantir a vida, a dignidade humana e o bem estar de todos, sem exceção, mas nem em tempos de pandemia nossos governantes se uniram em prol da nação. É isso que queremos? @petersonruansp
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